O assédio que não poupa ninguém

algo do passado, relação de poder,

O assédio que não poupa ninguém

Em outubro, a estreia de um programa de televisão que promove uma competição entre cozinheiros mirins de 9 a 13 anos gerou polêmica na internet. Mas o alvoroço não foi provocado pelos pratos preparados pelos pequenos nem pela reação deles à avaliação dos jurados.

O problema foi o assédio sexual sofrido por uma das participantes da atração, que tem apenas 12 anos de idade. A menina foi alvo de vários comentários de teor sexual postados por homens nas redes sociais. Havia até xingamentos entre as postagens. Nenhum dos autores do assédio parecia preocupado com o fato de que o envolvimento sexual com menores de 14 anos é crime de estupro.

Ameaça à infância
O abuso sofrido pela menina na internet também revelou outra questão: o assédio contra mulheres começa muito cedo, normalmente quando elas ainda são crianças. Um levantamento do grupo Think Olga mostrou que as brasileiras sofrem o primeiro assédio sexual entre 9 e 10 anos de idade. Para chegar ao resultado, o coletivo analisou histórias de assédio postadas por mulheres na rede social Twitter. O resultado foi assombroso. Milhares de mulheres afirmaram ter sofrido abusos durante a infância e grande parte delas revelou que a violência foi praticada por pais, avôs, tios, primos e amigos da família.

A coordenadora nacional do grupo Raabe (que ajuda mulheres que sofreram violência), Carlinda Tinôco Cis, lembra que o abuso contra crianças é um problema antigo. “O assédio e o abuso sempre existiram em nossa cultura, não importando a classe social. Antigamente, não existia tanta divulgação como hoje se vê, pois as famílias eram mais reservadas e as crianças, por falta de informação até mesmo sexual, se mantinham caladas”, afirma.

Abusada aos 12 anos
Untitled-1Não são apenas as brasileiras que vivem a realidade cruel dos abusos. A portuguesa Teresa Silva (Foto abaixo) tinha 12 anos quando foi violentada sexualmente por uma pessoa próxima de sua família. “Foi durante a noite, aconteceu uma vez. No outro dia, eu já estava diferente, mudei meu comportamento, fiquei calada”, relembra.

Teresa conta que seus pais chegaram a fazer perguntas, mas não desconfiaram do que havia acontecido. “Minha mãe tinha problemas de saúde e as circunstâncias da minha família não me davam oportunidade para contar”, explica.

O psicólogo e mestre em Ciências da Família, Leonardo Cavalcanti Pinheiro, destaca que a falta de diálogo dificulta a descoberta do abuso. “É importante incentivar a criança a contar o que fez durante o dia e não duvidar do seu relato, além de possibilitar a criação de um ambiente aberto e acolhedor”, aconselha.

No início, Teresa tentou esquecer o que tinha acontecido. Entretanto, o abuso provocava dificuldades em seu cotidiano. “Eu não conseguia mais me focar na escola, deixei de ter vontade de viver.” Ela também passou a viver com medo. “Eu não podia ficar perto da pessoa que tinha abusado de mim, tremia de medo quando alguém falava o nome dela, era um tormento constante”, explica.

Segundo Pinheiro, muitos abusos permanecem em segredo por causa da relação de poder que o abusador tem com a vítima. “É comum encontrar no consultório crianças e adolescentes que sofreram violência sexual e que foram ameaçadas física e psicologicamente, têm medo de ser punidas pelo que sofreram, carregam culpa ou vergonha, além de confusão de sentimentos”, analisa o especialista, que tem experiência em atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência.
Teresa escondeu a situação de seus pais por dois anos. Um dia, entretanto, ela desabafou. “Minha mãe simplesmente ouviu e saiu da sala sem dizer nada. Já meu pai queria saber se eu estava bem. O silêncio dela me matou ainda mais por dentro. Eu me senti um fracasso”, relembra.

A falta de apoio da mãe gerou uma mágoa que só começou a ser superada quando Teresa passou a frequentar as reuniões da Universal em Portugal. “O abuso gerou uma necessidade de ser amada e querida. Comecei a ir às reuniões e fui curada espiritualmente. Recebi de Deus o amor que não tinha recebido de ninguém”, assegura.

Teresa perdoou a mãe e o agressor por volta de 14 anos. Porém, já adulta, ela percebeu que ainda havia algo do passado que a incomodava. “Eu tinha medo de errar, carregava inseguranças e baixa autoestima. Eu me comparava ao meu marido e me achava burrinha. Tinha dificuldade de tomar decisões”, conta.

Teresa revela que conseguiu resolver essas questões por meio dos desafios do grupo Godllywood. “Se a mulher tem medo de alguma coisa ou rejeita algo, isso pode ter uma raiz no passado. O Godllywood me ajudou a entender e a superar isso. Hoje, falo do meu passado sem nenhum gosto amargo na boca”, conclui Teresa, que hoje tem 39 anos e mora na Nova Zelândia com o esposo, o bispo Vitor Silva.

O que você pode fazer
O pastor Guilherme Henriques, coordenador político da Universal em São Paulo, lembra que a população pode ajudar a combater os abusos por meio de denúncias ao Disque 100 (território Brasileiro). “Suspeitas de abuso de crianças ou adolescentes também podem ser encaminhadas ao Conselho Tutelar, que tem como atribuição ouvir, orientar e encaminhar os casos. A família pode ser direcionada para os setores de acompanhamento familiar, com psicólogos e outros profissionais, para que possam ser garantidos os direitos de crianças e adolescentes”, esclarece.

Já a psicóloga Sylvia Flores aconselha que pais e responsáveis ensinem as crianças que homens e mulheres devem ser respeitados da mesma forma. “Desde cedo, a menina aprende, através das investidas masculinas, que ela é frágil e pode ser agredida e dominada pelos homens. E a educação dos meninos? Eles estão sendo ensinados a respeitar a mulher ou a agir como caçadores?”, questiona.

Ela reforça que a família deve denunciar o abuso. “Se a violência aconteceu, é necessário denunciar, mesmo que haja constrangimento e vergonha. Quem tem que ter vergonha é o abusador, não a vítima”, conclui Sylvia, que é professora do Centro Universitário Newton Paiva, de Belo Horizonte.

Carlinda Tinôco Cis complementa que as vítimas precisam de apoio e tratamento para evitar que o crime afete suas vidas. “Se o abuso já aconteceu, é importante buscar ajuda para a cura interior, pois só mesmo a presença de Deus para cicatrizar. A família tem que apoiar e acolher a vítima.O projeto Raabe oferece orientação gratuita a mulheres vítimas de todos os tipos de violência nas unidades da Universal espalhadas pelo País. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone 020 7272 1010.

 

Medo de ser estuprada
Uma pesquisa da Think Olga mostrou que 81% das brasileiras já deixaram de fazer alguma atividade por medo de sofrer assédio. Em outras palavras, as mulheres têm medo de ser agredidas por homens que acreditam possuir direitos sobre seus corpos. E o medo tem fundamento: só em 2014, o Brasil registrou 47,6 mil estupros, segundo o 9º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O número de casos pode chegar a 500 mil ao ano, pois só uma pequena parte dos crimes é registrada, aponta uma estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Já o estudo Mapa da Violência indica que a violência doméstica e sexual mata uma mulher a cada duas horas no Brasil. Entre 1980 e 2010, foram 92 mil assassinatos.

Cada abuso – seja piada, seja cantada ou estupro – é um sinal claro da desvalorização e do desrespeito com que as mulheres ainda são tratadas. Para mudar essa realidade, é preciso que as pessoas não se calem. Na internet, em casa, no trabalho ou nas ruas, o abuso deve ser rejeitado, combatido e denunciado às autoridades. Essa atitude é fundamental para reduzir o número de mortes, promover a valorização da mulher e garantir que a igualdade de direitos seja respeitada no País.

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